
Por Fábio Borges inspirado nas fotografias de Everardo de Aguiar e nos textos do Grande Sertão : Veredas, de Guimarães Rosa
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte.
Só aquele sol, a assaz claridade – o mundo limpava que nem um tremer d’água. Sertão foi feito é para ser sempre assim: alegrias! E fomos. Terras muito deserdadas, desdoadas de donos, avermelhadas campinas. Lá tinha um caminho novo. Caminho de gado.
Muita vez a gente cumpria por picadas no mato, caminho de anta – a ida da vinda… De noite, se é de ser, o céu embola um brilho. Cabeça da gente quase esbarra nelas. Bonito em muito comparecer, como o céu de estrelas, por meados de fevereiro! Mas, em deslua, no escuro feito, é um escurão, que peia e pega. É noite de muito volume. Treva toda do sertão, sempre me fez mal. Diadorim, não, ele não largava o fogo de gelo daquela idéia; e nunca se cismava. Mas eu queria que a madrugada viesse. Dia quente, noite fria.
Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado; o anis enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, redobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco. De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu, aqui se vê. Porque, nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular – cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-dobrejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempoquente, a rola-vaqueira… e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o mom das vacas devendo seu leite. Mas, passarinho de bilo no desvéu da madrugada, para toda tristeza que o pensamento da gente quer, ele repergunta e finge resposta.
Se não, por que era que eram aqueles aprontados versos – que a gente cantava, tanto toda-a-vida, indo em bando por estradas jornadas, à alegria fingida no coração?:
Olererê, baiana…
eu ia e não vou mais:
eu faço que vou lá dentro,
oh baiana!
e volto do meio pra trás…
Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim voltou em mim, depois de tanto tempo, me custando seiscentos já andava, acoroçoado, de afogo de chegar, chegar, e perto estar. Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito. Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada. Viemos pelo Urucuia. Meu rio de amor é o Urucuia. O chapadão – onde tanto boi berra.
Certo dia, se achando trotando por um caminho completo novo, exclamou: – “Ei, que as serras estas às vezes até mudam muito de lugar!…” – sério. E era. E era mas que ele estava perdido, deerrado de rota, há, há. Ah, mas, com ele, até o feio da guerra podia alguma alegria, tecia seu divertimento.
Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, se podia ver um carro-de-bois parado, os bois que mastigavam com escassa baba, indicando vinda de grandes distâncias. Daí, o senhor veja: tanto trabalho, ainda, por causa de uns metros de água mansinha, só por falta duma ponte. Ao que, mais, no carro-de-bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe resolve. Até hoje é assim, por borco.
Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um meu amigo Vito Soziano, se assina desse almanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divididas matérias, todo ano vem. Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos – missionário esperto engambelando os índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo… Eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo.
O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração… Ah. Diz-se que o Governo está mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatu, por aí…
Eh… Que nem o Vão-do-Buraco? Ah, não, isto é coisa diversa – por diante da contravertência do Preto e do Pardo… Também onde se forma calor de morte – mas em outras condições… A gente ali rói rampa… Ah, o Tabuleiro? Senhor então conhece? Não, esse ocupa é desde a Vereda-daVaca-Preta até Córrego Catolé, cá embaixo, e de em desde a nascença do Peruaçu até o rio Cochá, que tira da Várzea da Ema. Depois dos cerradões das mangabeiras…
Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso – o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!
Demorei no fazer um cigarro. Nós estávamos na beira do cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado principia; a gente parava debaixo dum paratudo – pau como diz o goiano, que é a caraíba mesma – árvore que respondia à saudade de suas irmãs dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do Urucuia. Acolá era a vereda. Com o tempo se refrescando, e o desabafo do ar, buriti revira altas palmas. A por perto, se ouvia a algazarra dos companheiros. De ver, eu tinha dó, minha pena sincera de Diadorim, nessas jornadas. De verdade, entardecia. Derradeira arara já revoava.
Por Fábio Borges inspirado nas fotografias de Everardo de Aguiar e nos textos do Grande Sertão : Veredas, de Guimarães Rosa