
João Guimarães Rosa foi profundo observador de todas as religiões que existiram entre as várias comunidades humanas de todas as épocas e lugares, no ocidente ou no oriente. Sobretudo delas, de vários modos, em sua maioria camuflados, Guimarães Rosa se apropriou como matéria-prima de sua experiência nas artes de narrar e escrever, de criação literária. Como já foi sugerido, o escritor de Cordisburgo foi um atento observador dos registros deixados sobre sociedades agrárias, orais e escritos, particularmente no momento que, em crise, estas sociedades passaram de uma lógica rural para outra, como a urbana, e que se processou entre o Feudalismo e o Capitalismo na modernidade europeia. Nas sociedades primitivas os registros humanos sobre a concepção de mundo daqueles povos foram, em grande maioria, deixados pelas religiões dos mais diferentes matizes, pelo mito e pela arte (como a rupestre). Assim, o caminho para se acessar o essencial de uma cultura se fez também com colaborações variadas das religiões primitivas.
Suzi Frankl Sperber, em Caos e Cosmos, foi uma das pioneiras a abordar o tema da presença da religião e da metafísica na obra rosiana, sobretudo a partir de pesquisa sobre as marginalias deixadas naqueles livros que ficaram na diminuta biblioteca do autor, hoje sob os cuidados da Universidade de São Paulo, depositada no Fundo João Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros, IEB/USP. Ao contrário do que se pensa, Rosa guardou poucos livros, cerca de 2.700 apenas. Francis Utèza, em Metafísica do Grande Sertão, nos legou também fundamental interpretação sobre o tema religioso em Grande Sertão : Veredas, bem como Heloísa Vilhena de Araújo foi outra importante estudiosa da metafísica em Guimarães Rosa, a exemplo de As Raíses da Alma.
Como verão, na carta escrita a seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, em 25 de novembro de 1963, de modo muito singular Guimarães Rosa explica: a) as origens religiosas de Grande Sertão : Veredas e Corpo de Baile; b) a influência que a viagem por ele feita 4 anos antes, entre Felixlândia e Araçaí, a Boiada de 52, teve sobre os livros; e, c) sua profissão de fé, nos permitindo alcançar motivos pelos quais também rejeitou a alcunha de regionalista, afinal, o conteúdo religioso em sua obra é considerado o mais importante, nota 4, se comparado ao valor que ele mesmo dá à “realidade sertaneja” ou ao “cenário”: nota 1. Como a poesia, a metafísica e a religião são, ao menos para ele, o mais essencial.
Nesta narrativa do sexto dia da viagem entre Sagarana e Chapada Gaúcha, lhes apresentando o Caminho do Sertão Urucuiano, trazemos o tema da metafísica e da religião, nas cartas escritas por Guimarães Rosa, em Grande Sertão : Veredas e em sua fortuna crítica, a partir do tema do diabo e do mal, tema diversamente abordado na literatura desde os remotos livros bíblicos até Thomas Mann, Goethe, Vinícius de Morais, dentre outros. Na Seção Amigos de Rosa e do Sertão, terão oportunidade de conhecer um pouco da recepção crítica da literatura de João Guimarães na música popular brasileira, a exemplo de Chico Buarque, Clara Nunes, Caetano Veloso e Milton Nascimento. Ao lado da recepção musical, também terão a oportunidade de conhecer o discurso de posse proferido por Guimarães Rosa na Sociedade Brasileira de Geografia, em 20 de dezembro de 1945.
Boa leitura! Excelente viagem!
“Sem imodéstia, porque tudo isto de modo muito reles, apenas, posso dizer a Você o que Você já sabe : que sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estricto e das fileiras de qualquer confissão ou seita ; antes, talvez, como Riobaldo do “G.S. : V.”, pertença eu a todas. E especulativo, demais. Daí todas as minhas, constantes preocupações religiosas, metafísicas, embeberem meus livros. Talvez meio existencialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neo-platônico (outros me carimbam disso), e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou.
E eu mesmo fiquei espantado de ver, a posteriori, como as novelas, umas mais, outras menos, desenvolvem temas que poderiam filiar-se, de algum modo, aos “Diálogos”, remotamente, ou às “Eneadas”, ou ter nos velhos textos hindus qualquer raizinha de partida. Daí, as epígrafes de Plotino e Ruysbroeck.
Por outro lado, o sertão é de uma suma autenticidade, total. Quando eu escrevi o livro, eu vinha de lá, dominado pela vida e paisagem sertanejas. Por isso mesmo, acho hoje, que há nele certo exagero na massa documental.
Ora, você já notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essência, são “anti-intelectuais” – defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiano. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente. Por isto mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considera-los: a) cenário e realidade sertaneja : 1 ponto ; b) *enredo ; 2 pontos* ; c) poesia : 3 pontos ; d) valor metafísico-religioso : 4 pontos. Naturalmente, isto é subjetivo, traduz só a apreciação do autor, e do que o autor gostaria, hoje, que o livro fosse. Mas, em arte, não vale a intenção. Dei toda essa volta, só para reafirmar que os livros, o “Corpo de Baile” principalmente, foram escritos, penso eu, nesse espírito.” (Carta de Guimarães à Bizzarri, 25/11/63).
O diabo existe e não existe? (GSV, 11/9). Sendo esse o problema que tanto aflige Riobaldo. A palavra tem ocorrências muito numerosas e a sua sinomínia é deveras abundante. Leonardo Arroyo observa: Uma das maiores e mais significativas contribuições da cultura popular brasileira à Demonologia está no capítulo da sua nominata. Encontramos aí uma sinomínia exuberante, complexa, original, variada, com nomes regionais ao lado daqueles herdados de Portugal. Esta enorme sinomínia alcança 92 vocábulos na linguagem de Riobaldo, três vezes mais do que aquela apresentada por J. leite de Vasconcelos na tradição portuguesa (A Cultura Popular em GSV, p. 234 e ss.). [A maioria desses sinônimos é mencionada em ves. Próprios. Aqui vai uma relação boa de parte deles: Anhangão, Aquele, Barzabu, Berzebu, Belzebu, Bute, Capiroto, Ele, o Arrenegado, o Austero, o Azarape, o Bode-preto, o Cabrobró, o Canho, o Cão, o Careca, o Carocho, o Coisa-Má, o Coisa-Ruim, o Coxo, o Cabrobó, o Cramulhão, o Cujo, o Danador, o Das Trevas, Dê, o Debo, o Demo, o Demônio, o Diá, o Diogo, Dos Fins, o Drão, O Dubá, o Dubá Dubá, o Ele, o Grão Tinhoso, o Homem, o Indivíduo, o Mafarro, o Mal-encarado, o Maligno, o Morcegão, o Não-sei-que-diga, o O, o Ocultador, o Outro, o Pé-de-Pato, o Pé-preto, o Que-Diga, O-que-não-existe, o Que-Não-Há, o Rapaz, o Satanão, o Sem-gracejos, o Severo-mor, o Solto, o Sujo, o Temba, o Tendeiro, o Tenatador, o Tisnado, o Tristonho, o Tunes, O-que-nunca-se-ri, Xu]. (do Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant´Anna Martins).
LAGES, Suzana Kampff Lages, em João Guimarães Rosa e a Saudade, cita importante estudioso da obra de Walter Benjamin, o Gerschom Scholem e sugere que, do mesmo modo que os textos do filósofo frankfutiano podem ser lidos à luz da cabala judaica, os textos de Guimarães Rosa podem ser também vistos, por igual perspectiva, como sendo composto de uma superposição de camadas, à moda das Sagradas Escrituras. Para ela:
“Scholem considera o “texto como uma superposição de camadas (como as Escrituras, o texto é escrito e permite uma série de leituras diferentes), buscar a decifração de um sentido subjacente ao texto, chegando até os elementos mínimos da escrita (daí a importância das letras tomadas isoladamente e da possibilidade de realizar combinações entre elas, com consequente cambiamento de significação. ”
– NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas… Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte.
Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! não… Quem muito se evita, se convive. Sentença num Aristides – o que existe no buritizal primeiro desta minha mão direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-deSanta-Rita – todo o mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando: – “Eu já vou! Eu já vou!…” – que é o capiroto, o que-diga… E um José Simpilício – quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpilício se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem também que a besta pra ele rupeia, nega de banda, não deixando, quando ele quer amontar… Superstição. José Simpilício e Aristides, mesmo estão se engordando, de assim não-ouvir ou ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava… porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado? Há-de, não me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há, quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes, será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns três meses… Então? Que- Diga? Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças!
Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. Sei que é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos. Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com uma vara de maria-preta na mão – proseou que ia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoeira-dos-Bois, ele ia com o vigário do Campo-Redondo… Me concebo. O senhor não é como eu? Não acreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me consola – Quelemém de Góis. Mas ele tem de morar longe daqui, na Jijujã, Vereda do Buriti Pardo… Arres, me deixe lá, que – em endemoninhamento ou com encosto – o senhor mesmo deverá de ter conhecido diversos, homens, mulheres. Pois não sim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue- d’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasgaem-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre… o Hermógenes… Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes… Não sou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso…
Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse… Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela-já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar… Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento… Estrumes. …
O diabo na rua, no meio do redemunho…
Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não… Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.
Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor – compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é… Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens.
Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da- Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta… Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte – o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro – eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – três meninos e uma menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juizo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!
Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo.
De antes, anos, teve de se desarrear da jagunçagem. Pois, uma ocasião, algum esteve no rancho dele, no Alto Jequitaí, depois contou – que, vira tempo, vem assunto, ele dissesse: – “Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca cega… Mas, primeiro, castrar…” O senhor concebe? Quem tem mais dose de demo em si é índio, qualquer raça de bugre. Gente vê nação desses, para lá fundo dos gerais de Goiás, adonde tem vagarosos grandes rios, de água sempre tão clara aprazível, correndo em deita de cristal roseado… Piolhode-Cobra se dava de sangue de gentio. Senhor me dirá: mas que ele pro- nunceia aquilo fora boca, maneira de representar que ainda não estava velho decadente. Obra de opor, por medo de ser manso, e causa para se ver respeitado. Todos tretam por tal regra: proseiam de ruins, para mais se valerem, porque a gente ao redor é duro dura. O pior, mas, é que acabam, pelo mesmo vau, tendo de um dia executar o declarado, no real. Vi tanta cruez! Pena não paga contar; se vou, não esbarro. E me desgosta, três que me enjoa, isso tudo. Me apraz é que o pessoal, hoje em dia, é bom de coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e perversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente… Eu, já estou velho.
Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina… Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma… invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal. Posso vender essas boas terras, daí de entre as Veredas-Quatro – que são dum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso algum!? Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar… E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino. Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos – tudo corre e chega tão ligeiro –; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já se fez… Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em idéia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres.
Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele…
Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Araçuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencama, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor…
Diadorim também, que dos claros rumos me dividia. Vinha a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais. O demônio diz mil. Esse! Vige mas não rege… Qual é o caminho certo da gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver… O senhor já sabe: viver é etcétera… Diadorím alegre, e eu não. Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os pássaros, que bem-meviam todo tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava em sempre. Oi, suindara! – linda cor…
Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra… O demônio na rua, no meio do redemunho…
Bolas, ora. Senhor vê, o senhor sabe. Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada. Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta. Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor não conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não conheceram. O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino? O São Francisco cabe sempre aí, capaz, passa. O Chapadão é em sobre longe, beira até Goiás, extrema. Os gerais desentendem de tempo. Sonhação – acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no Menino pensava, eu acho que. Mas, para quê? por quê? Eu estava no porto do de-Janeiro, com minha capanguinha na mão, ajuntando esmolas para o Senhor Bom-Jesus, no dever de pagar promessa feita por minha mãe, para me sarar de uma doença grave. Deveras se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim? Artes que foi, que fico pensando.
Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então. Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta. Sabe, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho da guerra, eu ven- cendo, aí estremeci num relance claro de medo – medo só de mim, que eu mais não me reconhecia. Eu era alto, maior do que eu mesmo; e, de mim mesmo eu rindo, gargalhadas dava. Que eu de repente me perguntei, para não me responder: – “Você é o rei-dos-homens?…” Falei e ri. Rinchei, feito um cavalão bravo. Desfechei. Ventava em todas as árvores. Mas meus olhos viam só o alto tremer da poeira. E mais não digo; chus! Nem o se- nhor, nem eu, ninguém não sabe.
Amigo? Homem desses, alguém dizendo a um que ele é demônio de ruim, ele ria de não querer ser, capaz até de nessa raiva matar o outro. Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.
Queria eu lá viver perto de chefes? Careço é de pousar longe das pessoas de mando, mesmo de muita gente conhecida. Sou peixe de grotão. Quando gosto, é sem razão descoberta, quando desgosto, também. Ninguém, com dádivas e gabos, não me transforma. Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas filhos-de-deus – felão de mau. Meus ouvidos expulsavam para fora a fala dele. Minha mão não tinha sido feita para encostar na dele. Ah, esse Hermógenes – eu padecia que ele assistisse neste mundo… Quando ele vinha conversar comigo, no silêncio da minha raiva eu pedia até ao demônio para vir ficar de permeio entre nós dois, para dele me apartar. Eu podia rechear de balas aquele nagã próprio, e descarregar nele tiros, entre os todos olhos. O senhor tolere e releve estas palavras minhas de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia, sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais.
Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe.
Mas, aí, meu cavalo filosofou: refugou baixo e refugou alto, se puxando para a beira da mão esquerda da estrada, por pouco não deu comigo no chão. E o que era, que estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que sobre se viu quase nos olhos e nas orelhas dele. Do vento. Do vento que vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe – a briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, o doido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, o ponto às voltas, folharada, e ramaredo quebrado, no estalar de pios assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A gente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá adiante, por me esperar chegar. – “Redemonho!” – o Caçanje falou, esconjurando. – “Vento que enviesa, que vinga da banda do mar…” – Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia que fosse: redemunho era d’Ele – do diabo. O demônio se vertia ali, dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri? Pensei. O que pensei: o diabo, na rua, rio meio do redemunho… Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas palavras, que o senhor nunca deve de renovar. Mas, me escute. A gente vamos chegar lá. E até o Caçanje e Diadorim se riram também. Aí, tocamos.
Até à barra dos dois riachos, onde tem a cachoeira de escadinhas. Nem pensei mais no redemoinho de vento, nem no dono dele – que se diz – morador dentro, que viaja, o Sujo: o que aceita as más palavras e pensamentos da gente, e que completa tudo em obra; o que a gente pode ver em folha dum espelho preto; o Ocultador. Ao então, chegamos na barra dos riachinhos, na cachoeira; ficamos lá até o sol entrar.
Mas o demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que chegue a hora de se dançar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? Estive nessas vilas, velhas, altas cidades… Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão? Sertão: é dentro da gente. O senhor me acusa? Defini o alvará do Hermógenes, referi minha má cedência. Mas minha pa- droeira é a Virgem, por orvalho. Minha vida teve meio-do-caminho? Os morcegos não escolheram de ser tão feios tão frios – bastou só que tivessem escolhido de esvoaçar na sombra da noite e chupar sangue. Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus Gerais; voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias… Diadorim, os rios verdes. A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia. Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.
Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência – calma de que minha dor passasse; e que podia esperar muito longo tempo. O que vendo, tive vergonha, assaz. Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei: – “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu: – “Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais…” Eme cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme… Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.
SEÇÃO AMIGOS DE ROSA E DO SERTÃO
Na música popular brasileira foram muitos os artistas leitores da obra de Guimarães Rosa. Em Verdade Tropical Caetano Veloso assume que aprendeu a escrever lendo, além dos nordestinos Clarisse Lispector e João Cabral de Melo Neto, o João Guimarães Rosa. Assim, trazemos aqui “Assentamento” de Chico Buarque; “Sagarana” na voz de Clara Nunes; e “A Terceira Margem do Rio” de Milton Nascimento e Caetano Veloso.
Na sequência, lerão o discurso de Posse proferido por Guimarães Rosa em dezembro de 1945 na Sociedade Brasileira de Geografia, no Rio de Janeiro, pouco tempo depois do fim da Segunda Guerra Mundial ao retornar ao Brasil depois de longa experiência no estrangeiro: na Europa e América Latina. Guimarães Rosa, na condição de diplomata, ao ajudar sua segunda esposa, Aracy Moebius, a dar fuga do nazismo a quase 200 judeus, enquanto ele servia o Brasil na Alemanha como diplomata entre 1939 e 1942, chegou a ser preso durante 4 meses, em Baden-Baden por Hitler e, mais tarde, foi trocado por diplomatas alemães, e devolvido ao Brasil. Foi na prisão que Guimarães Rosa também conheceu o genial pintor pernambucano Cícero Dias. Anos mais tarde, Guimarães Rosa já tinha falecido, a comunidade judaica homenageou o casal com monumento erguido a eles, no Jardim dos Justos, ao norte de Jerusalém. Parte dessa história pode ser conhecida da leitura do livro A Justa, dedicado à vida de Aracy Moebius e à tentativa de localizar no Brasil todos os judeus por eles protegidos. Da experiência na Europa nazifascista, Guimarães Rosa nos legou um Diário de Guerra. E ainda há quem creia que Guimarães Rosa fora um reacionário disfarçado, um sujeito sem compromisso com a luta de seu tempo, apolítico portanto. Uma das cinco cópias do diário foi encontrado no acervo da escritora Henrique Lisboa quando este foi doado à Universidade Federal de Minas Gerais com vistas a compor o conjunto do acervo de escritores mineiros da Biblioteca Central, em Belo Horizonte. Mas nunca fora publicado.
A obra de Guimarães Rosa foi vertida para diversas línguas. Ele mesmo dizia dominar – conforme nos conta seu tio, naquela tentava de biografia do pequeno e jovem Guimarães Rosa, chamada Joãozito, antes de sua estreia nas letras nacionais – cerca de 15 idiomas e, com algum apoio de dicionários, conseguia saborear outras 13 línguas além. Corpo de Baile em italiano foi considerada a melhor de todas as traduções do livro, assim como foi no alemão, pelas mãos de Curt Meyer-Clason, que Grande Sertão : Veredas alcançou sua melhor versão estrangeira, na opinião do autor.
Discurso de Posse na Sociedade Brasileira de Geografia.
Devo explicar-me. De início, o amor da Geografia me veio pelos caminhos da poesia – da imensa emoção poética que sobe da nossa terra e das suas belezas : dos Campos, das matas, dos rios, das montanhas ; capões e chapadões, alturas e planuras, ipuêiras e capoeiras, caatingas e restingas, montes e horizontes ; do grande corpo, eterno, do Brasil. Tinha que procurar a Geografia, pois. Porque, ‹para mais amar e servir o Brasil, mistér se faz melhor conhecê-lo› ; já que, mesmo para o embevecimento do puro contemplativo, pouco a pouco se impõe a necessidade de uma disciplina científica. Desarmado da luz reveladora dos conhecimentos geográficos, e provido tão só da sua capacidade receptiva para a beleza, o artista vê a natureza aprisionada no campo punctiforme do momento presente. Falta-lhe saber da grande vida, envolvente, do conjunto. Escapa-lhe a majestosa magia dos movimentos milenários: o alargamento progressivo dos vales, e a suavização dos relevos ; o rejuvenescimento dos rios, que se aprofundam ; na quadra das cheias, o enganoso fluir dos falsos-braços, que são abandonados meandros ; a rapina voraz e fatal dos rios que capturam outros rios, de outras bacias; o minucioso registro dos ciclos de erosão, gravado nas escarpas ; as estradas dos ventos, pelos vales, se esgueirando nas gargantas das serranias ; os pseudópodos da caatinga, invadindo, pouco a pouco, os , ‹Campos Gerais›, onde se destrói o arenito e onde vão morrendo, silentes, os buritis; e tudo o mais, enfim, que representa, numa câmera lentíssima, o estremunhar da Paisagem, pelos séculos. Ainda agora, faz menos de uma semana, acabo de regressar de uma excursão de férias, extenuante mas proveitosa, realizada apenas para matar Saudades da minha região natal e para rever velhos poemas naturais da minha terra mineira. Quanta beleza ! Ávido, fiz, num dia, seis léguas à cavalo, para ir contemplar o rio epônimo – o soberbo Paraopeba – amarelo, selvagem, possante. O ‹cerrado›, sob as boas chuvas, tinha muitos ornatos : a enfolhada capa-rosa, que proíbe o capim de medrar-lhe em torno ; o pau bate-caixa, verde-aquarela, musical aos ventos; o pão- santo, coberto de flôres de leite e mel ; as lobeiras, juntando grandes frutas verdes com flôres rôxas ; a bôlsa-de-pastor, brancacenta, que explica muitos casos de ‹assombrações› noturnas ; e os barbatimãos, estendendo fieiras de azinhavradas moedinhas. Os Campos se ondulavam, extensos. Sôbre os tabuleiros os gaviões grasniam. A Lagoa Dourada, orgulho do Município, era um longínquo espelho. À Lagoa Branca, já hirsuta de juncos, guarda ainda o segredo do seu barro, que, no dizer da gente da terra, produz, na pele humana, intensa e persistente comichão. Buritís, hieráticos, costeiam, por quilômetros, o Brejão do Funil, imenso, onde voam os cocós e se congregam, às dezenas as graças. E, enfim, do ‹Alto Grande›, mirante sem preço, a vista se alongava, longíssima, léguas, até o azulado das montanhas, por baixadas verdes, onde pedaços do rio se mostravam, brilhantes, aqui e ali, como segmentos de uma enorme cobra-do-mato. Dois dias depois estava eu visitando, em Cordisburgo – o meu torrão inesquecível – a maravilha das maravilhas, que é a gruta de Maquiné. E, aqui, confesso, muita coisa se revelou a mim, pela primeira vez. Certo, eu já pensava em conhecer, desde a infância, os feéricos encantos da Gruta e suas deslumbrantes redondezas : morros, bacias, lagoas, sumidouros, monstruosos paredões de calcáreo, com o raizame laocôonico das gameleiras priscas, e o róseo florir das cactáceas agarrantes. Mas, era que, desta vez, eu trazia comigo um instrumento precioso – bússola, guia, roteiro, óculos de ampliação: o trabalho que devemos à minuciosa operosidade, ao sentimento poético, à capacidade científica e ao talento artístico do meu saudoso amigo Afonso de Guaíra Heberle : o reconhecimento topográfico ‹A Gruta de Maquiné e seus arredores›. Deu-se a valorização da estesia paisagística, graças às lições da ciência e da erudição. Prestígio da Geografia ! Mas, meus senhores, estou começando mal, por um abuso, e levo sustar esta longa explicação. Do que disse, de modo tão imperfeito, podereis avaliar o que sinto, perfeitamente.
Por Fábio Borges
Fotos são de Fábio Borges e Gustavo Meyer