Minas são muitas”, já dizia o mestre Guima. Desde que a capitania de São Paulo e Minas Gerais se dividiu dando origem aos dois estados brasileiros, muitas foram as lutas nas terras de Afonso Arinos e Guimarães Rosa, por eles eternizadas em suas literaturas, até que se chegasse à conformação territorial que conhecemos hoje como Minas Gerais segundo os mapas cartográficos. Porém, a história dessas lutas ainda não comparece de modo adequado nos livros escolares, nem mesmo nos de geografia. Assim, se presente no romanceiro sertanejo (entre o sertanismo e o regionalismo), afinal a literatura teve, até o governo Vargas, forte apelo à construção do nacional pela via dos conhecimentos pátrios e da “cor local”, com colaborações importantes de escritores, sobretudo os modernistas entre eles – além de Guimarães Rosa – como Carlos Drummond de Andrade, Abgar Renault, Luis da Câmara Cascudo, Alberto Rangel, Raul Bopp e Euclides da Cunha, ela ainda não está devidamente apresentada nos livros escolares quando se vai tematizar o conjunto dos processos sociais que conformam nossa experiência enquanto unidade da federação, sob um ponto de vista que não seja o mesmo do colonizador. Mesmo porque a região do norte de Minas Gerais, envolvendo aí também o Noroeste e o Jequitinhonha, recebeu influências da cultura agrária do nordeste muito antes das primeiras minas de ouro e diamantes descobertas. Matias Cardoso é do início da década de 1640. E essa história é ainda invisível em muitos aspectos, como vem demonstrando o Movimento Catrumano, em Montes Claros. Quem conhece a história da cidade Marina, e da atuação do grupo dos 11 de Brizola, na região, décadas atrás? Para Guimarães Rosa, o primeiro povoado em Minas Gerais, se chamava “Urubu”. Portanto, contar a história da formação do norte de Minas Gerais, muito ainda somente preservado pela tradição oral popular, ou pela literatura, precisa ser cada vez mais uma política pública de estado.

O quarto dia da caminhada pelo sertão, entre Sagarana e Chapada Gaúcha, percorrendo a bacia do rio Urucuia e suas margens geralistas, partiu da fazenda Menino, cuja história, é atravessada pelas lutas pela reforma agrária reais e ficionalizadas (a exemplo do mártir Eloy Ferreira na luta camponesa, e de Antônio Dó e Andalécio nas lutas jagunças reais e aquelas narradas por Riobaldo); pelas lutas contra a ditadura de 1964-85, com apoio de Leonel Brizola; e pela passagem da Coluna Prestes. Percorrendo a região, realidade e ficção se misturam. A narrativa que lerá, lhe apresenta ao apresentar o quarto dia de caminhada, o que há em Grande Sertão : Veredas sobre o Liso do Sussuarão, Antônio Dó e a Coluna Prestes.

A partir de agora, nossas postagens, trarão uma seção especial (AMIGOS DE ROSA E DO SERTÃO) dedicada a apresentar a recepção da obra de Guimarães Rosa em todos os campos das artes e do conhecimento. Na narrativa do quarto dia lhes trazemos o tema dos ilustradores e dos críticos literários: com Poty Lazzarotto e Alan Viggiano. Evoé! A próxima narrativa, do quinto dia, trará a recepção pela fotografia do paulista Germano Neto, radicado nas minas ouro-pretanas. Ele viajou durante 10 anos, diversas vezes, para captar com sua lente o universo dos gerais urucuianos que serviu de substrato ao ofício criativo do filho de Cordisburgo. Outras surpresas virão no campo da crítica literária, dos movimentos sociais, do teatro, etc. Até lá!

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E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda o liso do Suçuarão. Ela estava chegando do arranchado de Medeiro Vaz, que por ele mandada buscar, ele querendo suas profecias. Loucura duma? Para quê? Eu nem não acreditei. Eu sabia que estávamos entortando era para a Serra das Araras – revinhar aquelas corujeiras nos bravios de ali além, aonde tudo quanto era bandido em folga se escondia – lá se podia azo de combinar mais outros variáveis companheiros. Depois, de arte: que o Liso do Suçuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um escampo dos infernos. Se é, se? Ah, existe, meu! Eh… Que nem o Vão-do-Buraco? Ah, não, isto é coisa diversa – por diante da contravertência do Preto e do Pardo… Também onde se forma calor de morte – mas em outras condições… A gente ali rói rampa… Ah, o Tabuleiro? Se- nhor então conhece? Não, esse ocupa é desde a Vereda-da- Vaca-Preta até Córrego Catolé, cá embaixo, e de em desde a nascença do Peruaçu até o rio Cochá, que tira da Várzea da Ema. Depois dos cerradões das mangabeiras… Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Suçuarão, é o mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros. Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela não agüentou a raiva em meus olhos.

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Viver nem não é muito perigoso? Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o projeto de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente para o Liso do Suçuarão – a dentro, adiante, até ao fim. – “E certo é. É certo” – Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de que ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipado nem miúda palavra. E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava vergonha de se me entender um ciúme amargoso. Sendo sabendo que Medeiro Vaz depunha em Diadorim uma confiança muito maior do que em nós outros todos, de formas que com ele externava os assuntos. Essa diferença de regra agora me turvava? Mas Medeiro Vaz era homem de outras idades, andava por este mundo com mão leal, não variava nunca, não fraquejava. Eu sabia que ele, a bem dizer, só guardava memória de um amigo: Joca Ramiro. loca Ramiro tinha sido a admiração grave da vida dele: Deus no Céu e Joca Ramiro na outra banda do Rio. Tudo o justo. Mas ciúme é mais custoso de se sopitar do que o amor. Coração da gente – o escuro, escuros.

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Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério – foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo… Seu Joãozinho Bem- Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro consistia. Joca Ramiro – grande homem príncipe! – era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Só Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó – severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E o “Urutu-Branco”? Ah, não me fale. Ah, esse… tristonho levado, que foi – que era um pobre menino do destino…

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O senhor sabe: o perigo que é viver… Mas só do modo, desses, por feio instrumento, foi que a jagunçada se findou. Senhor pensa que Antônio Dó ou Olivino Oliviano iam ficar bonzinhos por pura soletração de si, ou por rogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermão de padre? Te acho! Nos visos… De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de suas jagunçadas, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo – foi em arraso de um tirotei’, p’ra cima do lugar Serra-Nova, distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal.

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Então, Diadorim o resto me descreveu. Pra por lá do Suçuarão, já em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judas possuía sua maior fazenda, com os muitos gados, lavouras, e lá morava sua família dele legítima, de raça – mulher e filhos. A gente suprisse de varar o Liso em boas farsas, se chegava lá sem ser esperados, arrastava aquele pessoal por dura surpresa – acabou-se com aquilo! Mesmo quem havia de deduzir que o Liso do Suçuarão prestasse para nele caminho se impor? Ah, eles prosperavam em sua fazenda feito num quartel de bronze – com que por outros cantos não se podia remeter, pois de arredor decerto tinham vigias, reforço de munição e récua de camaradas, pelos pontos de passagem dificultosa, que eles governavam, em cada grota e cada ipueira. Truco que, de repente, do lado mais impossível, a gente fosse surgir de sobrevento, soflagrar aqueles desprevenidos… Eu escutei, e perfiz até um arrepio. Mas Diadorim, de vez mais sério, temperou: – “Essa velha Ana Duzuza é que inferna e não se serve… Das perguntas que Medeiro Vaz fez, ela tirou por tino a tenção dele, e não devia de ter falado as pausas… Essa carece de morrer, para não ser leleira…”

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Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antônio Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses – Davidão era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas que às vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer. Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davidão dava a ele dez contos de réis, mas, em lei de caborje – invisível no sobrenatural – chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver? Para nenhum deles não tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam… Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia… Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça?

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Buriti, minha palmeira,
lá na vereda de lá
casinha da banda esquerda,
olhos de onda do mar…

Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de prata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se embaçavam de renuvem, e não achei acabar para olhar para o céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo – pedação, tábua suante, padecente. Voltar para trás, para as boas serras! Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara. O senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma moita, um pé de parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartou do meu lado. Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu roçava longe dele em meus pensamentos. – “Riobaldo, não se matou a Ana Duzuza… Nada de reprovável não se fez…”

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Urubu é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida
– vim de lá, volto mais não…
Vim de lá, volto mais não?…
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti –água azulada,
carnaúba – sal do chão…
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração…

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Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os olhos, para não reter os horizontes, que trancados não alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Suçuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade – feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e ir, vir – e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existido doidante, só agora pior, se destapava – era o que eu tinha rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves – iam como o costume – sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio de- sistido por si… A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando – só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Água não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoços para pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser poupado. Se ia, o pesadelo. Pesadelo mesmo, de delírios. Os cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum poço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores fare- jando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu variava? A saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que dava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais – Buritis Altos, cabeceira de vereda – na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a diguice duma música, outra água eu provava. Otacília, ela queria viver ou morrer comigo – que a gente se casasse. Saudade se susteve curta.

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Razão dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme Medeiro Vaz com as poucas palavras: que íamos cruzar o Liso do Suçuarão, e cutucar de guerrear nos fundões da Bahia! Até, o tanto, houve, prezando, um rebuliço de festejo. O que ninguém ainda não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer. Como fomos: dali do Vespê, tocamos, descendo esbarrancados e es- corregador. Depois subimos. A parte de mais árvores, dos cerrados, cresce no se caminhar para as cabeceiras. Boi brabeza pode surgir do caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca soube – vem feio pior que onça. Se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente. Daí, se desceu mais, e, de repente, chegamos numa baixada toda avistada, felizinha de aprazível, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizal dos mais altos: buriti – verde que afina e esveste, belimbeleza. E tinha os restos de uma casa, que o tempo viera destruindo; e um bambual, por antigos plantado; e um ranchinho. Ali se chamava o Bambual do Boi. Lá a gente seria de pernoitar e arrumar os finais preparos. Eu estava de sentinela, afastado um quarto-de-légua, num alto retuso. Dali eu via aquele movimento: os homens, enxergados tamanhinho de meninos, numa alegria, feito nuvem de abelhas em flor de araçá, esse alvoroço, como tirando roupa e correndo para aproveitarem de se banhar no redondo azul da lagoa, de donde fugiam espantados todos os pássaros – as garças, os jaburus, os marrecos, e uns bandos de patos-pretos. Semelhava que por saberem que no outro dia principiava o peso da vida, os com- panheiros agora queriam só pular, rir e gozar seu exato. Mas uns dez tinham de sempre ficar formando prontidão, com seus rifles e granadeiras, que Medeiro Vaz assim mandava. E, de tardinha, quando voltou o vento, era um fino soprado seguido, nas palmas dos buritis, roladas uma por uma. E o bambual, quase igualmente. Som bom de chuvas. Então, Diadorim veio me fazer companhia.

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Mas, nestes derradeiros anos, quando Andalécio e Antônio Dó forcejaram por entrar lá, quase com homens mil e meio-mil, a cavalo, o povo de São Francisco soube, se reuniram, e deram fogo de defesa: diz-que durou combate por tempo de três horas, tinham armado tranquias, na boca das ruas – com tapigos, montes de areia e pedra, e árvores cortadas, de través – brigaram como boa população! Daí, aqueles retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidade quase toda, conforme guerrearam contra o Major Alcides Amaral e uns soldados, cercados numas duas ou três casas e um quintal, guerrearam noites e dias. A ver, por vingar, porque antes o Major Amaral tinha prendido o Andalécio, cortado os bigodes dele. Andalécio – o que, de nome real: Indalécio Gomes Pereira- homem de grandes bigodes. Sei de quem ouviu, se recordava sempre com tremores: de quando, no tiroteio de inteira noite, Andalécio comandava e esbarrava, para gritar feroz: – “Sai pra fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!…” Tudo gelava, de só se escutar. Aí, quem trouxe socorro, para salvar o Major, foi o delegado Doutor Cantuária Guimarães, vindo às pressas de Januária, com punhadão de outros jagunços, de fazendeiros da política do Governo. Assim que salvaram, mandaram desenterrar, para contar bem, mais de sessenta mortos, uns quatorze juntos numa cova só! Essas coisas já não aconteceram mais no meu tempo, pois por aí eu já estava retirado para ser criador, e lavrador de algodão e cana. Mas o mais foi ainda atual agora, recentemente, quase, isto é; foi logo de se emendar depois do barulhão em Carinhanha – mortandades: quando se espirrou sangue por toda banda, o senhor sabe: “Carinhanha é bonitinha…” – uma verdade que barranqueiro canta, remador. Carinhanha é que sempre foi de um homem de valor e poder: o coronel João Duque – o pai da coragem. Antônio Dó eu conheci, certa vez, na Vargem Bonita, tinha uma feirinha lá, ele se chegou, com uns seus cabras, formaram grupo calados, arredados. Andalécio foi meu bom amigo. Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?

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Diadorim apalpou meu braço. Vi: os olhos dele marejados. Mor que depois eu soube – que, a idéia de se atravessar o Liso do Suçuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado. Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, de lá, do estralal do sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto é, uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais grave sido que restamos sem os burros, fugidos por infelizes, e a carga quase toda, toda, com os mantimentos, a gente perdemos. Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio do regular das estrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E em lugares deerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome – caça não achávamos – até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto – juro ao senhor – enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando: era criaturo de Deus, que nu por falta de roupa… Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse: – “Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos…” Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. – “Aí, então, é a fome?” – uns xingavam. Mas outros conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de quarto-delégua de lá, um mandioca) sobrado. – “Arre que não!” – ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser mandiocabrava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepego esquisito, e enganava o estômago. Melhor engolir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinham dores, pensaram que carne de gente envenenava. Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma disenteria, garrava a ter nojo de mim no meio dos outros. Mas pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Suçuarana, ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo.

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Agora, o senhor saiba qual era esse o meu projeto: eu ia traspassar o Liso do Suçuarão! Senhor crê, sem estar esperando? Tal que disse. Ainda hoje, eu mesmo, disso, para mim, eu peço espantos. Qu’ é que me acuava? Agora, eu velho, vejo: quando cogito, quando relembro, conheço que naquele tempo eu girava leve demais, e assoprado. Deus deixou. Deus é urgente sem pressa. O sertão é dele. Eh! – o que o senhor quer indagar, eu sei. Porque o senhor está pensando alto, em quantidades. Eh. Do demo? Se é como corujão que se voa, de silêncio em silêncio, pegando rato-mestre, o qual carrega em mão curva… No nada disso não pensei; como é que pudesse? A invenção minha era uma, os minutos todos, tivesse um relógio. A atravessar o Liso do Suçuarão. Ia. Indo, fui ficando airoso. Por forma como a gente rodeou outra volta, não se passando no Vespê e no Bambual-do-Boi, nenhum de meus homens não tirou palpite desse propósito. Pasmo deles ia ser. Daí, uns desconfiavam, de se estar onde estávamos. Donde a perto dele umas poucas cinco léguas: o desmenso, o raso enorme – por detrás dos morros. E a gente dava a banda da mão esquerda ao Vão-do-Oco e ao Vão-do-Cuio: esses buracões precipícios – grotão onde cabe o mar, e com tantos enormes degraus de florestas, o rio passa lá no mais meio, oculto no fundo do fundo, só sob o bolo de árvores pretas de tão velhas, que formam mato muito matagal. Isto é um vão. E num vão desses o senhor fuja de descer e ir ver, aindas que não faltem as boas trilhas de descida, no barranco matoso escalavrado, entre as moitarias de xaxim. Ao certo que lá embaixo dá onças – que elas vão parir e amamentar filhos nas sorocas; e anta velhusca moradora, livre de arma de caçador. Mas o que eu falo é por causa da maleita, da pior: febre, ali no oco, é coisa, é grossa, mesma. Terçã maligna, pega o senhor; a terçã brava, que pode matar perfeito o senhor, antes do prazo de uma semana.

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Na feira de São João Branco, um homem andava falando: – “A pátria não pode nada com a velhice…” Discordo. A pátria é dos velhos, mais. Era um homem maluco, os dedos cheios de anéis velhos sem valor, as pedras retiradas – ele dizia: aqueles todos anéis davam até choque elétrico… Não. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas anti- gas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.

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Adiante da gente, o mangabeiral. Depois, o raso. Aí o Liso do Suçuarão – em fundo e largo, as cinqüenta léguas e as quase trinta léguas, das mais. Ninguém me fazia voltar a seco de lá. Aquela hora, eu só não me desconheci, porque bebi de mim – esses mares. Também eu não ia naquilo sem alguma razão, mas movido merecido. Por conta do Hermógenes? Nossos dois bandos viajavam em guerra e contraguerra, e desenrolando caminhos, por esses Gerais, cães, se caçando. Só que o sertão é grande ocultado demais. Então, eu ia, varava o Liso, ia atacar a Fazenda dele, com família. Ovo é coisa esmigalhável. E a bem. Para vencer justo, o senhor não olhe e nem veja o inimigo, volte para a sua obrigação. Mas eu dava as costas à cobra e achava o ninho dela, para melhor acerto. Ao que, esse não tinha sido o arrojo de Medeiro Vaz? O dia parava formoso, suando sol, mesmo o vento suspendido. Vi o chão mudar, com a cor de velho, e as lagartixas que percorriam de leve, por debaixo das moitas de caculucage. O pessoal meu não devia de estar com inquietação? Vi uma coruja – mas corujinha entortadeira; e coruja só agoura mesmo é em centro de noite, quando dá para risã. E cuspi no branco leite duma maria-brava, que toda às sãs cheirosa florescia. Era a hora. Repuxei os freios, bem esbarrando. Equei os meus homens. – “Aqui, gente.” Guerreiros em minha presença! Com certo rebuliço, como todos vieram, para saber daquela novidade. Declarei a eles. Todos me entenderam? Em fila – as caras todas ficando iguais. Me seguissem? Ah, nenhum não tinha ar do que ia ser, e que fazia tantos dias eu tencionava. Nem João Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, nem o Alaripe. Nem Diadorim. Diadorim me olhou tremeluzentemente: de coragem, de disposto. Ele, sim. Mas, os outros? Seria que medissem meu mor atrevimento? Era feito se eu estivesse aloucado extenso. Porque, o que eu estava mandando, nem Medeiro Vaz mesmo não teria sido capaz de crer: eu queria tudo, sem nada! Aprofundar naquele raso perverso – o chão esturricado, solidão, chão aventesma – mas sem preparativos nenhuns, nem cargueiros repletos de bom mantimento, nem bois tangidos para carneação, nem bogós de couro-cru derramando de cheios, nem tropa de jegues para carregar água. Para que eu carecia de tantos embaraços? Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência? Isso, não pensei – mas meu coração pensava. Eu não era o do certo: eu era era o da sina! E nem enviei adiante nenhuma patrulha de farejadores – nem Suzarte, Nélson ou o Quipes, que tapejassem; nem o Tipote para trilhar e entender, ver se divulgava os socorros: alguma grota duvidável d’água. Se o cada um que se valesse, cada um que me seguisse. – “Agora vamos entrar, para pernoitar lá dentro…” – eu determinei. Só era se aviar.

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– “Teu destino dando em data, da meia-noite tu vivente não passa…” Os que diziam assim eram todos eles, secundando os cabecilhas. Valentes que eram, e como foram se animando. Ao que me obedeciam, ao meu melhor em redor. A gente andou no comum, até ao fim do grameal. Aí, se estava, se esbarrava, frente a frente com o Liso. Rédeas às ordens. A gente se moveu. Sol em glória. Eu pensei em Otacilia; pensei, como se um beijo mandasse. Soltando rédeas, entrei nos horizontes. Aonde entrei, na areia cinzenta, todos me acompanhando. E os cavalos, vagarosos; viajavam como dentro dum mar. O senhor vê e vê? Alguém a alto me levou, alguém, salvo a um seguinte. Águas não desmanchavam meu torrão de sal. Ah, nem eu não tive incerteza em mente. Assim fomos. Aí eu em frente adiante. A fortes braços de anjos sojigado. O digo? Os outros, a em passo em passo, usufruíam quinhão da minha andraja coragem. Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem refiro que fosse difícil-ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios? Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As estrelas pareciam muito quentes. Nos nove dias, atravessamos. Todos; bem, todos, tirante um. Que conto. O que era – que o raso não era tão terrível? Ou foi por graças que achamos todo o carecido, nãostante no ir em rumos incertos, sem mesmo se percurar? De melhor em bom, sem os maiores notáveis sofrimentos, sem nem errar ponto. O que era, no cujo interior, o Liso do Suçuarão? – era um feio mundo, por si, exagerado. O chão sem se vestir, que quase sem seus tufos de capim seco em apraz e apraz, e que se ia e ia, até nãoonde a vista não se achava e se perdia. Com tudo, que tinha de tudo. Os trechos de plano calçado rijo: casco que fere faíscas – cavalo repisa em pedra azul. Depois, o frouxo, palmo de areia de cinza em-sobre pedras. E até barrancos e morretes. A gente estava encostada no sol. Mas, com a sorte nos mandada, o céu enuveou, o que deu pronto mormaço, e refresco. Tudo de bom socorro, em az. A uns lugares estranhos. Ali tinha carrapato… Que é que chupavam, por seu miudinho viver? Eh, achamos reses bravas – gado escorraçado fugido, que se acostumaram por lá, ou que de lá não sabiam sair; um gado que assiste por aqueles fins, e que como veados se matava. Mas também dois veados a gente caçou – e tinham achado jeito de estarem gordos… Ali, então, tinha de tudo? Afiguro que tinha. Sempre ouvi zum de abelha. O dar de aranhas, formigas, abelhas do mato que indicavam flores. Todo o tanto, que de sede não se penou demais. Porque, solerte subitamente, pra um mistério do ar, sobrechegamos assim, em paragens. No que nem o senhor nem ninguém não crê: em paragens, com plantas. De justiça, digo, também: uma regra se teve, sem se saber de quem foi que veio a idéia dessa combinação. Qual foi que a gente se apartou, em grupos de poucos, jornadeando com a maior distância aberta. Mas que, assim, quando um avistasse qualquer coisa diversa, podia dar sinal, chamando os outros para novidade boa. Eu que digo. Mesmo, não era só capim áspero, ou planta peluda como um gambá morto, o cabeça-de-frade pintarroxa, um mandacaru que assustava. Ou o xiquexique espinharol, cobrejando com suas lagartonas, aquilo que, em chuvas, de flor dói em branco. Ou cacto preto, cacto azul, bicho luís-cacheiro. Ah, não. Cavalos iam pisando no quipá, que até rebaixado, esgarço no chão, e começavam as folhagens – que eram urtigão e assa-peixe, e o neves, mas depois a tinta-dos-gentios de flor belazul, que é o anil-trepador, e até essas sertaneja-assim e a maria-zipe, amarelas, pespingue de orvalhosas, e a sinhazinha, muito melindrosa flor, que também guarda muito orvalho, orvalho pesa tanto: parece que as folhas vão murchar. E erva- curraleira… E a quixabeira que dava quixabas. Digo – se achava água. O que não em-apenas água de touceira de gra vatá, conservada. Mas, em lugar onde foi córrego morto, cacimba d’água, viável, para os cavalos. Então, alegria. E tinha até uns embrejados, onde só faltava o buriti: palmeira alalã – pelas veredas. E buraco-poço, água que dava prazer em se olhar. Devido que, nas beiras – o senhor crê? – se via a coragem de árvores, árvores de mata, indas que pouco altaneiras: simaruba, o anis, canela-do-brejo, pau-amarante, o pombo; e gameleira. A gameleira branca! Como outro-tempo se cantava: sombra, só de gameleira, na beira do riachão… Assim achado, tudo, e o mais, sem sobranço nem desgosto, eu apalpei os cheios. O respeito que tinham por mim ia crescendo no bom entendido dos meus homens. Os jagunços meus, os riobaldos, raça de UrutuBranco. Além! Mas, daí, um pensamento – que raro já era que ainda me vinha, de fugida, esse pensamento – então tive. O senhor sabe. O que me mortifica, de tanto nele falar, o senhor sabe. O demo! Que tanto me ajudasse, que quanto de mim ia tirar cobro? – “Deixa, no fim me ajeito…” – que eu disse comigo. Triste engano. Do que não lembrei ou não conhecesse, que a bula dele é esta: aos poucos o senhor vai, crescendo e se esquecendo…

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Pois nem bem três léguas andadas, daí depois, a gente saía do Liso, como que a ponto: dávamos com uma varzeazinha e um esporão da serra; chapadas, digo. Apeei na terra cristã. Se estava no para ver esses campos crondeubais da Bahia. Adiante vim para pedir gole d’água, todo pacífico, no rancho de um solteiro; esse deu informação de que, dez léguas em volta, o povoal ia existindo sem questão. Somente seguimos. Dali antes, a gente tinha passado o Alto-Carinhanha – lá é que o Rei-Diabo pinta a cara de preto. Onde chegados na aproximação do lugar que se cobiçava. Dado dia e meio – descrevendo no rumo que certo achamos logo – se havia de ter a casa da raça do Hermógenes! Lei de que íamos dar lá, madrugando madrugada, pegando todos desprevenidos, em movível supetão. Pois o Hermógenes parava longe, em hora recruzando meus antigos rastros, estes rasgos ele não adivinhava. Aí era o meu contrabalanço. Ah! – choca mal, quem sai do ninho…

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A noite breava própria; o mais escuro ia ser regulando em antes das dez horas, que quando depois podia subir um caco de lua. Aos poucos, foi dando um tão respeitável silêncio, não se atirava de parte nem de outra, a gente mesma ficava na cautela de não se fabricar rumor nenhum, de não se pautear sem necessidade. De noite, o clarão das pólvoras marca denúncia do lugar do atirador. – “Noite é p’ra surpresas de estratagemas, noite é de bicho no usável…” – o Alaripe baixo falou.

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Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo. Mas saímos, saímos. Subimos. Ao quando um belo dia, a gente parava em macias terras, agradáveis. As muitas águas. Os verdes já estavam se gastando. Eu tornei a me lembrar daqueles pássaros. O marrequim, a garrixa-do-brejo, frangos-d’água, gaivotas. O manuelzinho-da- croa! Diadorim, comigo. As garças, elas em asas. O rio des- mazelado, livre rolador. E aí esbarramos parada, para demora, num campo solteiro, em varjaria descoberta, pasto de muito gado.

SEÇÃO AMIGOS DE ROSA E DO SERTÃO

Alan Viggiano viajou pelos sertões do Urucuia na década de 1970, e nos deixou livro onde narra a aventura em que tentou encontrar na realidade os topônimos da ficção rosiana. Um dos locais que buscou identificar foi o Liso do Sussuarão. Em Intinerário de Riobaldo Tatarana ele escreveu o seguinte:

 

E finalmente chegam ao Liso do Suçuarão, que outro não é senão o Liso da Campina ou Liso da Campanha, no município de Formoso, na divisa de Minas com a Bahia, antes de Chegar ao rio Carinhanha. Atravessam o Liso sem maiores problemas, atacam de surpresa a fazenda do Hermógenes, destroem tudo e aprisionam a mulher a mulher legítima do jagunço, com intenção de trazê-la para cobrar resgate ou ferir de qualquer maneira o inimigo. A seguir o bando descreve um arco perfeito, descendo por Goiás, na beira da divisa com Minas Gerais, onde entram uma ou duas vezes. os pouco locais indicados são: Mata de São Miguel, na divisa de Minas com Goiás, entre Cabeceiras e Unaí; e mais: Serra das Divisões, um pouco abaixo; E rio São Marcos que, como se sabe, separa Minas de Goiás à altura dos municípios de Paracatu e Cristalina.

Três nomes ganharam destaque na fortuna crítica do escritor no tema das ilustrações. Dois deles, Poty Lazzarotto e Djanira, atuaram ainda sob a orientação rigorosa de Guimarães Rosa na fatura de seus livros. Ele supervisionava tudo. O terceiro, Arlindo Daibert, natural de Juiz de Fora, MG, não conheceu Guimarães mas nos legou primoroso trabalho plástico acerca do Grande Sertão : Veredas em variadas técnicas, da xilogravura à aquarela.

Baliza importante para se entender a relação de Rosa com o real e com seu processo de criação aí está: ele diz tomar o “mundo por desenho e escrito”. Seus livros – pelo menos aqueles cujas impressões se deram sob seu atuar vigilante de editor – são o casamento dessa duplicidade, o desenho e o escrito. Assim, uma mesma estória é, como livro impresso, contada de dois modos distintos, simultâneos, complementares. Um, sob o ponto de vista da pintura, do desenho, da ilustração, da imagem pictórica (nas capas, contracapas e no interior do livro) e outro, pela narrativa oral na forma escrita. Com a transferência dos direitos autorais para a editora Nova Fronteira essas ilustrações desapareceram do novo formato editorial. Para Rosa, resgatar a relação ente o desenho e o escrito segundo a cultura egípcia antiga foi artifício útil, que lhe serviu como estratégia poética de combate à inércia e à atrofia dos sentidos que percebia decorrer dos impactos da indústria cultural e das grandes guerras mundiais sobre a sensibilidade e o pensamento humano e sobre a natureza, e também sobre a palavra, sobretudo a sobre a palavra falada. Quem vê nas edições de Sagarana nos tempos da José Olympio aquela ilustração da cabeça de boi seca caída no chão do sertão, sobre a qual um passarinho está pousado, não tem como não fazer de imediato a analogia com aquela carta do tarô egípcio que traz igual símbolo, porém, no caso africano, a cabeça do boi está viva.

Tudo que se deixou em todos os campos das artes, do conhecimento e da religião, sobre antigas sociedade agrárias, Rosa foi atento conhecedor, sobretudo do legado do Egito hieroglífico. Os livros de Rosa editados por ele, portanto, contavam a mesma história em dois tipos de linguagens, assim como faziam os antigos sacerdotes nos livros sagrados, por exemplo. A sociedade egípcia era majoritariamente ágrafa, mesmo assim, ela está na origem das línguas latinas e de suas derivações como o português e o brasileiro.

Nessa direção Poty compreendeu largamente a reverência rosiana à cultura de matriz africana na formação de nossa brasilidade e porque Rosa dizia (depois de ter conhecido a cultura europeia) desejar ir ao avesso do tapete – a África – onde se conhece toda a trama e se tem todo registro do cerzir, buscando dar-lhe forma plástica. Entendeu – tanto na cultura brasileira quanto na literatura de Rosa – as influências vindas daquela porção do oriente africano e indo-asiático, sobretudo aquelas que compuseram o magma da cultura oral, agrária, e suas formas narrativas populares, como a saga a lenda brasileiras. Lazzarotto quis, por isso, alcançar no desenho a mesma coisa que Rosa alcançou na escrita. E fizeram isso juntos, foram co-autores. Quem hoje compra a obra rosiana a compra pela metade. Desde que não mais se publicou a obra original, decorre daí a impossibilidade de qualquer leitor fazer ideia da pluridimensionalidade que a compõe, além do fato de que essa multiplicidade de dimensões que conformam o texto romanesco nunca poderão ser na íntegra, em sua totalidade, compreendidas por um único leitor, é a sensação que se tem ao se dar conta do projeto daquele homem das letras sertanejas. Saímos perdendo, pois estamos sendo impedidos de enfrentar o desafio proposto por Rosa no contato com o Grande Sertão : Veredas em todas as suas dimensões formais, em todos os seus matizes a desvendar. O que se tem da obra nas edições contemporâneas é uma versão mutilada do projeto originário enquanto livro, apenas sua parte escrita foi preservada (embora, internamente no texto escrito, tenham desconsiderado várias singularidades no uso da língua por Guimarães Rosa, a exemplo dele preferir sempre o S onde usualmente se usa o Ç nas palavras, por considerar o S a letra mais dançante do alfabeto. Assim, as edições atuais usam Suçuarão e Sussuarão indiscriminadamente). Os atuais editores parecem não ter entendido as várias camadas e complexidades envolvidas pela obra de Guimarães Rosa.

Com vocês Poty Lazzarotto!

Ilustrações de Poty Lazzarotto

Ilustrações de Poty Lazzarotto

 

Por Fábio Borges
Fotos são de Fábio Borges e Gustavo Meyer